Inclusão e Permanência: Políticas de Cotas para Pessoas Transexuais e Travestis na Pós-Graduação

Apesar dos baixos índices de escolaridade, a criação de políticas afirmativas na pós-graduação para pessoas transexuais e travestis representa um estímulo à inclusão e à permanência no universo educacional.

Por Natasha Mastrangelo

Bandeira Trans (Foto: Reprodução)

Aos 23 anos, Wescla Vasconcellos, uma jovem travesti de Sobral, cidade localizada no interior do Ceará, tenta, pela segunda vez, conquistar uma vaga na pós-graduação. Candidata a uma vaga no Programa de Pós-Graduação em Cultura e Territorialidade da Universidade Federal Fluminense (PPCULT-UFF), Wescla pretende utilizar o sistema de cotas implementados pela primeira vez no processo seletivo do programa.

Formada em Pedagogia pela Universidade Federal do Ceará, a jovem possui uma trajetória acadêmica de sucesso. Entrou na universidade aos 16 anos, participou de grêmios estudantis e de movimentos sociais e foi a primeira travesti a presidir o Diretório Acadêmico da universidade na qual se formou em 2016. Wescla é uma exceção, já que, de acordo com dados do projeto Além do Arco-íris, do grupo AfroReggae, publicados no Mapa de Assassinatos de Transexuais e Travestis no Brasil em 2017, apenas 0,02% da população de travestis e transexuais estão na universidade. Isso porque, devido ao preconceito e a situações de violência física e psicológica, a vida escolar de pessoas trans e travestis costuma ser interrompida ainda nas primeiras etapas de formação. De acordo com dados do projeto, 72% dessa população não possui o ensino médio completo e 56% sequer concluiu o ensino fundamental.

Wescla Vasconcellos

“A negação ao acesso e à permanência, interrompida por ódio, preconceito e discriminação na educação básica, não permite que pessoas trans cheguem ao ensino superior”, afirma Wescla. Para ela, a implementação das cotas na pós-graduação é uma medida importante para motivar pessoas trans e travestis a prosseguir com os estudos. “A gente vê uma abertura e um avanço das universidades em relação às políticas de ação afirmativa, o que empodera as pessoas a continuar estudando para poder ter um acesso ao Mestrado, ao Doutorado. E continuarem sua capacitação profissional e aí avançarem nesse direito à educação que é muito importante na vida das pessoas trans”, declara.

 

Ações afirmativas e Programas de Pós-Graduação


No Brasil, desde 2002, alguns programas de pós-graduação de universidades públicas implementaram políticas de cotas em seus editais de seleção. Segundo um boletim do Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (GEMAA – UERJ), nos últimos dois anos houve um crescimento de ações afirmativas em decorrência da Portaria n. 13 de 2016 estabelecida pelo Ministério da Educação (MEC). Apesar do documento não mencionar pessoas trans e travestis, alguns programas de pós-graduação pelo país se sensibilizaram para a necessidade de políticas de cotas para essa parcela da população. De acordo com o GEMAA, dos 610 programas de pós-graduação acadêmicos com ações afirmativas espalhados pelo Brasil, apenas 12,62% reservam vagas para pessoas trans e travestis.

Para Flávia Lages, professora do PPCULT-UFF, a política de cotas é fundamental para a democratização e universalização do ensino superior. “A universidade tem que criar condições para que qualquer indivíduo que não está representado nela, possa alcançá-la”, afirma. No estado do Rio de Janeiro, a UFF é uma das universidades que, desde 2016, realiza importantes discussões sobre políticas de cotas na pós-graduação. Além da realização de eventos acadêmicos e debates, a Pró-Reitoria de Pesquisa, Pós-Graduação e Inovação da universidade divulgou no ano passado um relatório sobre o perfil dos estudantes de pós-graduação da instituição. Ainda não há dados específicos sobre a participação de pessoas transexuais e travestis nos cursos de pós-graduação da universidade. Contudo, o relatório aponta que 10,4% dos estudantes de pós-graduação já vivenciaram ou presenciaram situações LGBTfóbicas.


Política de Cotas e a transformação da realidade educacional de pessoas trans e travestis

Para Sayonara Nogueira, professora e vice-presidente do Instituto Brasileiro Trans de Educação (IBTE), as políticas de cotas são positivas, mas ela ressalta a importância de políticas públicas voltadas para a inclusão e permanência de travestis e transexuais no ensino básico. “É de grande estima estas iniciativas que propõem cotas para as pessoas trans na pós-graduação, porém, infelizmente, não se adéqua a nossa realidade. Acredito que deva ter primeiro políticas públicas de inclusão desta população na Educação Básica”, ressalta. Segundo dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), devido à exclusão social, familiar e escolar, 90% da população de travestis e transexuais acabam utilizando a prostituição como fonte principal de renda.

Bruna Benevides, secretária de articulação política da ANTRA e integrante do PreparaNem, um curso pré-vestibular direcionado à pessoas transexuais e travestis em situação de vulnerabilidade social, lembra que aspectos básicos como o uso do nome social e o acesso ao banheiro ainda são questões que causam polêmica. Apesar de alguns avanços legais, como a portaria nº 33 de 2018 do MEC que autoriza a utilização do nome social nos registros escolares do Ensino Básico, ainda existe um despreparo dos profissionais da educação para lidar com as demandas desses alunos.

“É preciso ainda capacitar os agentes públicos que atuam na educação, eu recebo denúncias diárias de estudantes trans que sofrem todo tipo de assédio moral e psicológico por parte de professores e gestores, portanto, um trabalho de sensibilização com os profissionais já causaria um grande impacto”, afirma Sayonara, que ao longo de 16 anos como professora do Ensino Básico teve apenas três alunos transexuais.

Bruna Benevides e Sayonara Nogueira (Foto: Divulgação)

Apesar dos altos índices de evasão escolar, para a maioria das entrevistadas, a política de cotas para travestis e transexuais representa um estímulo à permanência no ensino básico e, posteriormente, no ensino superior. Para Benevides, as cotas são importantes, porque possibilitam que essas pessoas se sintam compelidas a integrar, permanecer e produzir conhecimento nas diversas etapas da formação escolar e acadêmica. “É de suma importância que as cotas sejam defendidas, garantidas e, principalmente, incentivadas para que as pessoas possam, de alguma forma, se sentirem pertencentes dentro da sociedade e da própria construção do conhecimento”, afirma.

“A produção do conhecimento também é pra pessoas trans. A gente vê aí mesas de debate, defesa de dissertações, de tese de doutorado e que falam sobre nós, mas não somos nós falando. Não somos nós trazendo nossas narrativas. Que as narrativas sejam feitas por pessoas trans, que esses corpos possam colocar para fora suas histórias, de que esses corpos possam falar sobre sua comunidade”, afirma Wescla Vasconcellos, que ao participar do processo seletivo para o Mestrado, aproxima-se do sonho de ser professora universitária. “Eu quero muito fazer um Mestrado, desenvolver pesquisas que contribuam com o desenvolvimento social e que também deem visibilidade para as questões que são importantes para nossa população”, afirma.

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